Segundo o banco de dados acadêmico do tráfico de escravizados SlaveVoyages, cerca de 3.192.969 de africanos escravizados desembarcam no Brasil, destes, cerca de 1.831.842 vieram da África Centro-Ocidental. Assim, 57,37% do número total vieram desta região, sendo majoritária na escravidão brasileira e tendo um grande impacto na formação social e cultural de nosso país. É nessa região que se localizam diversos povos que fazem parte do que pesquisadores europeus, a partir da década de 1860, denominariam como tronco linguístico Bantu, palavra que significa “homens” ou “povo” na grande maioria desses idiomas (SLENES, 1992, p.50-51). Mesmo que se trate de uma denominação externa, imposta por pesquisadores europeus colonialistas, muitas vezes rejeitada por certos povos da região, o interessante é perceber que essa semelhança entre línguas também estava presente na cultura.
Apesar disso, não podemos cometer o erro de acreditar que todos os povos Bantu são iguais ou que se trata de um mesmo povo. Como é de se esperar de sociedades que se localizam de uma costa da África até a outra, existem mais de 400 grupos étnicos que podem ser considerados Bantu, cada um com idiomas, culturas e sociedades diferentes. Ainda assim, podemos encontrar uma base cultural e religiosa em comum, como uma raíz central por onde florescem muitos galhos distintos (CRAEMER, VANSINA, FOX, 1976, p.458-475). Essa raíz religiosa se estrutura por meio de uma “pirâmide vital”, um mundo espiritual composto por diferentes elementos, cuja força espiritual é decrescente da ponta até a base (ALTUNA, 1985, p.58-61):
O Deus Supremo reina sobre o universo, mas recebe diferentes nomes dependendo do povo em questão (Kalunga, Nzambi, Lessa, Mvidie, etc). Abaixo dele se encontram os arqui patriarcas, os fundadores dos primeiros clãs e grupos humanos, os ancestrais primordiais. Embaixo deles, estão os espíritos da natureza, ligados a regiões geográficas específicas, que habitam lagos, rios, pedras, ventos e florestas, com atuação sobre os fenômenos naturais. Então chegamos aos ancestrais mais recentes, os “grandes mortos”, que atuaram em prol da prosperidade da comunidade, tiveram papéis relevantes em sua história e por isso são lembrados e cultuados mesmo após sua morte. Finalmente temos os antepassados, os mortos mais próximos, também cultuados caso tivessem uma boa conduta em vida (DAIBERT, 2015, p.11-14).
Cada um deles, inclusive nós, recebe uma partícula da energia vital do Deus Supremo, em maior quantidade na medida que se aproximam da ponta, sendo os ancestrais e antepassados os intermediários diretos entre a comunidade e a divindade suprema. Para os povos Bantu uma boa relação com esse mundo espiritual é essencial para manter a prosperidade da comunidade e caso haja algum desequilíbrio, certamente ocorrem desastres. Para nos mantermos fortalecidos precisamos cuidar de nossas relações com todos os elementos e suas energias, para que essas não nos enfraqueçam em troca. Como uma teia de aranha, todos estamos conectados e não podemos desregular uma relação sem que o resto também seja desregulado. E quando isso ocorre, é necessário a intervenção de um sacerdote (DAIBERT, 2015, p.14-15).
O Candomblé Kongo-Angola é muito influenciado por essa base cultural e religiosa Bantu, e isso está evidente em nosso culto a Divindade Suprema Nzambi, em nossos arqui patriarcas e espíritos da natureza na forma dos Minkisi (plural de Nkisi), nos ancestrais e antepassados, que são nossas entidades. Para nós, manter uma boa relação com todos eles e com nossa comunidade também é essencial para nossa prosperidade e felicidade. A prática de nosso culto e nossa conduta moral são os grandes responsáveis por manter nossa força vital. Quando ocorre algum desequilíbrio em nossas vidas, são nossos sacerdotes que nos orientam e nos colocam de pé. E essa teia que nos mantém unidos e constantemente trocando energia e vida.